sexta-feira, 30 de setembro de 2011

06:35 AM Quarta-feira - 04 de Outubro de 1993

Eu estava a sonhar com flores; eu estava a sonhar que estava em um campo cheio de flores, para ser mais exato. Meu corpo estava embrulhado por umas vestes antigas - dos tempos das cortes, dos tempos dos reinos. Eu corria, com um sorriso sincero-nojento na face, amassando aquelas coisinhas pitorescas e coloridas, fazendo com que um cheiro, insuportável, de lavanda, penetrasse em minhas narinas. Eu corria, corria, e não tirava aquele maldito sorriso da cara; então, ainda sonhando, senti um cheiro de carne queimada, e o campo grotescamente belo foi ficando preto, foi degradando-se. Senti minhas íris roçando em minhas pálpebras. Senti um calor infernal sobre minha face, e continuei sentindo o cheiro de carne, mais intenso. Ainda de olhos fechados, não mais sonhando, com um pé no mundo dos sonhos inconscientes e outro no mundo dos sonhos conscientes, pensei que haviam colocado minha face em uma chapa - daquelas que assam coisas em cima - , ou que estava no inferno, por isso a ardência e o cheiro, enojante, de carne queimada.

Continua...

domingo, 18 de setembro de 2011

 Foi numa das tardes monótonas de dezembro, em meio à meu ritual cotidiano na varanda de meu apartamento, que notei, por absoluto desleixe, desvio momentâneo de atenção, uma belíssima moça de cabelos castanhos cruzar a rua em frente ao prédio onde moro.
 Em cinco anos, naquele mesmo ciclo monótono de vida, nada havia me despertado o interesse, nada fizera com que eu desviasse minha atenção para algo além dos meus artefatos ritualísticos (se assim os posso chamar).
 O rosto dela eu não vi, estava coberto por seus cabelos, porque o vento insistia em jogá-los contra sua face. Não sei dizer-lhes nada a respeito dos olhos, da boca, das sobrancelhas, porém, acho que sou capaz de descrever, em ordem alfabética, todos os detalhes daqueles cabelos, que tinham as pontas queimadas de sol, e nem eram totalmente lisos nem cacheados. O equilíbrio pairava sobre aqueles fios finos - o desequilíbrio pairava sobre aqueles fios hipnóticos.
 Sou capaz de descrever, minuciosamente, os detalhes de seu vestido verde meio desbotado, contrastando entre o claro, médio e escuro.
 Eu não enxerguei chão sob seus pés, eu não enxerguei prédios ao seu redor, muito menos seres humanos. Aquela mulher me fez cair, ainda mais, na irrealidade.
 Ela me fez beber sonho, comer sonho, respirar sonho e até mesmo expelir sonho.
 O nome dela eu não sabia, e não queria saber. Se eu soubesse o nome, o endereço, talvez ela não mais se encaixasse nos padrões irreais, talvez ela se tornasse igual a tantas outras mulheres que passam na calçada do prédio onde moro, mais uma na fila do pão.
 Eu era submisso à ela, eu era dependente... porque sonho ela me dava, porque da realidade suja ela me tirava, porque com o leite quente do seu seio ela me alimentava.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

"Nunca vi bicho mais desprezível que o ser humano.
Manias, críticas, hábitos estranhos, orgulho indestrutível, egoísmo, aversões...
Quem me dera tivesse nascido cão, gato, ou qualquer outro animal.
Quem dera não tivéssemos evoluído. Quem dera comêssemos, todos, com as mãos, e catássemos os piolhos uns dos outros, tal como os macacos.
Maldita evolução da espécie!"

" Odeio televisão. Odeio mais a televisão que aos humanos, porque sempre que a ligo, tenho a impressão de estar convivendo com dezenas de mim, só que de cores e ideologias diferentes; e, ao conviver com esses outros de mim, ao conhecer o universo que existe além dessas quatro paredes, a televisão me faz acreditar, inconscientemente, na ideia de que eu realmente o conheço.
 A televisão é um instrumento do diabo, usado para iludir e converter pessoas a uma realidade que não existe.
 Ter uma TV em casa é pior que conviver consigo; é pior que ouvir, 24h por dia, a voz irritante da nossa consciência, ou ser forçado a ter contatos esporádicos com outra criatura da mesma espécie.
 Prefiro viver na ignorância - coisa que muito me incomoda - à ser enganado por uma máquina criada pelo diabo.
25-11-1993 Quebrei minha televisão e comprei um papagaio.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

 Era fim de tarde, e eu não tinha absolutamente nada para fazer, - ou tinha, mas não queria fazer - então tomei meu violão, puxei um banco e sentei-me na varanda do meu luxuosíssimo apartamento de um quarto só, uma cama só - um cômodo só. [vós notais a ironia? mera ilusão, a vossa. Gosto deveras das coisas simples. Gosto?] Toquei meu samba de uma nota só, tomando uma dose só de vinho, fumei um só cigarro; nesse meu desfrutar do prazer de estar desfrutando algo comigo, não percebi que as retinas de uma espécie humana, no ápice da juventude, estava a se encantar com a rotina de um velho de 35 anos de idade (Trinta e cinco anos é a idade cronológica.    
 Era curioso, o rapaz; depois de ter notado, toquei, mais uma vez, o meu samba de uma nota só, tomei mais uma dose de vinho, fumei mais um cigarro. Rompi o meu ciclo só para estudar o olhar naquele menino - ou talvez para me envaidecer.
 Eu não entendia. Como pode alguém sentir interesse pela rotina de uma alma velha como a minha?
 Eu já não entendia mais nada, e não entender fenômenos acontecidos comigo, frusta-me bastante. Tenho para mim que fiz uma grosseria medonha; levantei de súbito, pegando violão, quebrando o copo em que havia bebido as duas doses de vinho. Arremessei o violão sobre o sofá da sala e voltei a olhar para baixo - acho que com uma certa fúria nos olhos; a fúria da ignorância, da curiosidade - o menino continuava lá, observando tudo o que eu fazia. Ele não tirava os olhos de mim.
 Não, eu não me envaidecia, eu tinha raiva, mas era raiva de mim, por não poder compreender o que acontecia, por não poder gritar: - EI! POR QUE ME OLHAS ASSIM? COMO SOU AI, DENTRO DA TUA CAIXA DE PENSAMENTOS? - e, de repente, parecer mais ignorante e ranzinza do que já me condenava a face.
 Resolvi permanecer ali, feito uma estátua humana que tossia, suava e escarrava. Então, entre um ou dois segundos de diferença - na verdade, os segundos de diferença são bem relativos, mas me pareceram um ou dois segundos de intervalo mesmo -  foram chegando mais pessoas, e mais pessoas, e riam - para meu maior tormento. Eu continuava na ignorância, e envergonhado - o que não é pior que a ignorância, mas também me aflige. A vergonha, creio eu, só existe em função do contato social, ou quase-social, considerando o fato de que meu contato com pessoas não chega a ser de total interação; e esse negócio de socializar 'sempre' me irritou bastante.
 Passaram-se minutos de risadas e comentários, mas eu, com minha audição divina, não conseguia ouvir que diabos aquelas pessoas tanto falavam; então, depois de uma rajada de vento, me bateu um frio incomum - um frio de arrancar os dentes - foi ai que - acredito que por impulso ou coisa parecida - cruzei os braços na tentativa de aquecer meu corpo, e minhas mãos, tão surpresas quanto eu, sentiram falta do tecido áspero de minhas vestes. Continuei apalpando meus braços, peito, tórax, e só sentia a maciez de minha pele. Agora, meus caros, na minha face não mais se estampava o ódio ocasionado pela incompreensão, mas sim a surpresa e o medo; medo de olhar para baixo e ver... ver... ver meu sexo exposto, na vista de crianças, mulheres, homens, gatos, cachorros.
 Não olhei. Continuei com a mesma face, atônito, olhando para aquelas pessoas que estavam a debochar de mim - exceto o rapaz que já me olhava há tempos. Fui deslizando minhas mãos pelo meu tórax até chegar nos países baixos, e, ao sentir meu pelos púbicos, tratei de esconder, o que muitos já haviam visto, com as mãos. Corri para dentro e tranquei a porta que dava acesso à varanda. A vergonha não era o que me perturbava, mas sim o fato de eu, por algumas horas, ter esquecido que existia vida além daquelas quatro paredes, daquele cubículo que eu chamava, carinhosamente, de lar; eu havia me esquecido, também, que já não usava mais roupas em casa há meses.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

 Hoje acordei às seis horas da manhã; logo eu, que trocava o sol pela lua, que costumava queimar as retinas só depois do meio dia. Hoje percebi que a rotina de um homem pode mudar, antes eu só sabia. A simples mudança de horário me fez despertar; hoje eu senti, na pele, a metamorfose cotidiana - e sentir é diferente de saber.
 Substituí o refresco pelo café, o cigarro pelo charuto.
 Eis a palavra: Mudança.
 Desde o falecimento de Penélope - minha esposa - eu estava vivendo sem viver; era como se eu acordasse, abrisse os olhos, mas, mesmo assim, continuasse dormindo. Eu assistia, pela janela de meu apartamento, todos os homens, e mulheres, indo e vindo, pisando onde outros pisaram segundos antes, cuspindo onde outros cuspiram momentos antes; via mulheres chorando a miséria nas calçadas, via homens traindo esposas com moças da vida, e nada me parecia real. Comia, e a comida tocava os pontos sensitivos de minha língua sem provocar nenhum prazer ou nenhuma aversão; as dores da carne já não eram tão insuportáveis. Desde que Penélope resolveu ser mais uma estrela brilhante no céu, eu ia vivendo assim, como se sonhasse de olhos abertos, como um sonambulo que comia, bebia e defecava; mas hoje - não sei porquê hoje - me senti vivo ao acordar, com o sol queimando minha face, já achando estranho o incômodo que isso me causava, já achando estranho algo me estar causando alguma sensação.

sábado, 23 de julho de 2011

Saiu e não fechou a maldita porta.
Odeio quando Matilde sai e deixa o rabo aberto.
Já falei para ela, para Dolores, para Carmélia. Falei inúmeras vezes, mas só Matilde - a mais formosa, a dos seios mais fartos - insiste em passar por cima de minhas ordens.
Ah! Se ela soubesse quanta raiva me faz ao deixar a porta aberta.
Já possuo, em minha residência, cinco encantadoras hóspedes, mas acho que ela, a Matilde, - a da porta, oras! -   quer mais companhia.
Deixo bem clara a minha teoria: "Quando aberto o buraco, é mais fácil a penetração dos insetos" - não sei se o leitor compreende e crê em minha teoria, mas pouco me importa -
A Matilde precisa de um acompanhamento psiquiátrico, cada vez venho a me convencer mais disso.
Está quase evidente a loucura de minha quarta esposa.
Logo ela... a mais formosa das cinco.
Entristeço-me, de verdade.
Poderia ser a Carmélia, que tem olhos claros, pele de neve, mas não é tão carnuda quanto minha 'Tilde'.
Os deuses foram injustos comigo.
Amaldiçoaram-me com esta praga... a da loucura.
O que vou dizer quando meus vizinhos, familiares e amigos perguntarem do paradeiro de minha esposa? Direi que ficou doida? Jamais.
Não há pior deficiência que a loucura.
Vou ali... pensar.
Deixe-me só, leitor.
Quero me despir, e sair andando pelas escadas de minha casa, porque assim eu penso melhor. É um exercício interessante. Deverias tentar também.
Mude a página. Deixe-me só com a loucura contagiosa de minha mulher. Deixem-me despir-me.